A compreensão do mundo ‘como ele é’ desdobra-se, de forma geral, a partir de dois domínios indissociáveis. Em primeiro lugar, o domínio biológico. É graças a nossa organização biológica que conseguimos distinguir e interpretar os sinais aos quais somos sensíveis no meio. Somos um organismo uno, no entanto tão fragmentados quanto nossa própria origem. O olfato, o paladar, a visão e o tato são, de certa forma, janelas de possibilidades interpretativas.
Mecanismos fisiológicos de perceber e sentir, através das quais fazemos a leitura do mundo e, a ele, imputamos sentido.
Traduzido e transcrito por nossa rede neuro-fisiológica e hormonal, o mundo, gerado na ordem da psique, é sempre uma representação do real. Uma leitura, uma narrativa, e como qualquer narrativa, é influenciada pelo seu interlocutor.
É nesse ponto de intersecção que precisamos considerar a influência cultural, gritantemente evidente até mesmo nos espaços que se dizem ser laicos. Esta escolha é cultural.
Mesmo dispondo do mesmo equipamento biológico para interpretar o mundo, pré-definido geneticamente, os sentidos não proporcionam uma visão singular sobre um mesmo fenômeno. Novamente, são apenas janelas de possibilidades interpretativas. Mas como?
As diferentes maneiras de sistematizar o conhecimento são a chave para entender como um sistema que é definido biologicamente para compreender os mesmos inputs, pode gerar outputs tão distintos. Cada comunidade, local e tempo possui uma linguagem comum, um pacote de códigos e signos sobre o mundo e as coisas. Este conjunto de códigos funciona como regras interpretativas que condicionam o pensar – demarcam a estrutura do pensamento e as relações com o meio ambiente – objetos, fenômenos, pessoas, relações sociais. Como uma rede, esta estrutura social é passada para todos aqueles que se encaixam no mesmo padrão.
Em síntese, esta dinâmica traça as fronteiras da cultura que, de forma simbiótica, condiciona a compreensão dos fenômenos, alicerçando a visão de mundo dos indivíduos, fundando sua compreensão sobre a Natureza. Paradoxalmente, Natureza e cultura se complementam. Como posto por Bruno Latour em Jamais fomos modernos, são conceitos híbridos, assim como nós. As nossas estratégias de compreender o mundo são testemunhas deste fato. São carregadas de subjetividade, de laços culturais, de limitações, de regras, de valores. Não há uma forma pura, ausente de juízo, para compreender os fenômenos do mundo. Somos duplamente determinados.
Thiago Severo
10 comentários:
sugiro a leitura de "tempo livre", do livro "palavras e sinais" de T. W. Adorno. Ou ainda alguma coisa da Psicologia não-diretiva, ou mesmo um pouco de filosofia. eu não tenho ferramentas de coletas de dados, nem outputs, nem nada desse discurso curioso e porque não dizer regressivo, desse texto. Sem mais.
Quem tem ferramenta de coleta de dados, tem resultados e divulgação científica sobre: http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-livre-arbitrio-nao-existe-dizem-neurocientistas
Olá! A psicologia não-diretiva não constitui o fulcro deste ensaio. Muito menos a fenomenologia.
Como pode ser lido, trata da compreensão do bios e do social como dois determinantes da máquina biológica. Proporcionam simultaneamente interpretação, significação de informações e construção de conhecimento.
Tratamento e coleta de dados significa responder a estímulos do meio. Você sente algo quente e, prontamente, remove sua mão? Isso é coleta e tratamento de dados! Resposta humoral? idem. Fica triste pela morte de um parente? idem... Sugiro a leitura da Teoria informacional.
bom, apesar de não ter citado a interessante contribuição da fenomenologia, entendo seu comentário e é exatamente a concepção de mundo e de homem exposta no referido artigo que questiono. E, por isso, trago a Filosofia à discussão. E o autor da Teoria Crítica da Sociedade referido dá sustentação ao questionamento, epistemologicamente falando.
Aliás, estudando a Escola de Frankfurt, que é base da Teoria Crítica da Sociedade, podemos questionar o texto no seguinte sentido: a ideologia da racionalidade tecnológica invadindo o humano, fetichizando a relação com o objeto de tal forma que chega a se comparar com o objeto, a se resumir ao objeto, trocando os fins pelos meios, como no texto referido e, obviamente, contendo algo de regressivo, como já citado. Seu texto me remeteu às experiências nazistas no campo da biologia humana. E a Escola de Frankfurt me dá elementos teóricos para chegar a essa conclusão.
Desculpe mas não pude encontrar o seu questionamento, apenas sua colocação.
O argumento aqui é uma forma de pensar híbrida sobre o funcionamento da máquina biológica, que é duplamente determinada (vide título e postagens anteriores).
Esta estratégia de pensar sobre o homem e mundo, esta epísteme, já é bastante trabalhada na filosofia. Talvez um bom começo para sua pesquisa seja pela obra do biofísico Henri Atlan. Nesse sentido sim, seria de cunho epistemológico.
O questionamento não necessariamente vem em forma de frases interrogativas, mas talvez de tristes constatações de que os teóricos das Humanidades já falavam há mais de cinquenta anos. No mais, numa ciência multiparadigmática como a que faço parte, questionamentos como esse façam mais sentido.
Talvez por conviver com ambos os campos de conhecimento, este semblante interpretativo faça mais sentido para mim, crees. Na biologia, a compreensão do conceito de Cultura é algo caro. Nas humanidades, certamente, os estudos da antropologia simétrica fazem muito sentido para compreender o homem como espécie e a cultura como construção de regras. O ponto de vista aqui é que esta construção passa por semblantes interpretativos determinados pelo bios (o que chamo de máquina biológica).
Vou citar o trecho de um livro que acabei de ler, é a parte final dele. Geier M, Do que riem as pessoas inteligentes? Uma pequena filosofia do humor, 2011.
Do capítulo O jogo final da metafísica.
As duas últimas estrofes da peça que é um diálogo entre Martin Heidegger, Max Horkheimer e Rudolf Carnap:
Max fala
Os seus sistemas não são nada além
da experiência refinada
do indivíduo burguês.
Ilusões metafísicas
e a alta matemática
são da mesma medida
elementos da sua mentalidade.
Voz dos Bastidores...
Tal pensamento
se solidariza
com a metafísica
no momento da sua queda.
(essa última estrofe em alusão ao livro do Theodor W. Adorno. Dialética Negativa, de 66)
Portanto, considerar Frankfurt e a quem a ciência serve nos leva aos essencialismos e lógicas mil. Realidade que é bom nada, devanear sobre isso e sobre aquilo é importante para se construir as hipoteses nossas de cada dia, agora ficar nisso é um tanto sem tesão. Materializar a vida é fato, agora para quem esse conhecimento vai servir já é outra discussão. O que Thiago trata é trabalhar o real.
O determinismo biológico existe, principalmente com o avanço da genética e da neurociência. Os modelos de dominação mudaram, e cabe às ciências biológicas junto com as humanas definir como e onde usar esse conhecimento. Tomara que esse conhecimento vá para as ciências da saúde, exista para nos auxiliar e assim construir um conhecimento amplo dos blocos materiais que nos constroem.
Romantizar que o determinismo não existe é o mesmo que propor a ausência da dominação dos ricos sobre os pobres, só que a riqueza agora é outra, o conhecimento, a riqueza que não pode ser tirada, a riqueza que se aproxima da verdade.
Gostei do nível de discussão. Vamos postar mais para movimentar mais aqui.
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